José Forjaz, Business Manager do FootballISM é autor do seguinte artigo de opinião. Foi publicado originalmente no Observador numa versão resumida.
"De Zurique, lembra-se que o futebol está a passar por uma situação sem par desde a Segunda Guerra Mundial ..." - Jornal "Marca"
O Covid-19 mudou definitivamente as nossas vidas. Será que também a vida e o mundo do futebol em Portugal vão poder aproveitar a oportunidade para se adaptarem às novas tecnologias, tornando os clubes mais eficientes na sua gestão?
De um dia para o outro, fecharam-se os estádios e os centros de treinos. Toda a atividade parou. Os jogadores foram para casa, os adeptos também. Acabaram receitas de bilheteira, receitas dos sponsors…existem duvidas sobre se a época acaba, ou se a próxima começa mais tarde para deixar esta acabar. O que fazer com os salários dos jogadores que não estão a “produzir”? Como ter legitimidade para pedir aos patrocinadores ou aos compradores dos direitos televisivos que paguem se a equipa não joga?
Assim como os governos precisam de diretivas supranacionais (EU, FMI, G7), também o Futebol precisa. Não podemos ter um campeonato a acabar já, e outro a durar até finais de agosto. Será que a FIFA e a UEFA irão tomar as melhores decisões para garantir que continuamos todos a ter espetáculo e emoção, seja em que formato for?
A verdade é que, tal como o mundo, o futebol vive uma fase de profunda transformação que é, por seu turno, uma excelente oportunidade para uma reflexão profunda sobre o seu rumo.
Neste artigo, tentarei identificar algumas destas dinâmicas e suas fragilidades, e assim dar algumas luzes de caminhos que considero possíveis. Uma coisa é certa: estamos longe de entender até onde essa mudança e transformação nos vão levar, mas depende de cada um de nós (ou neste caso, de cada clube/dirigente/associação) determinar o futuro deste desporto centenário.
O Futebol Hoje
O Futebol é, hoje em dia, um dos maiores negócios do mundo. A Final do mundial é o evento mais visto em todo o planeta. Estima-se que existam mais de 260 milhões de pessoas envolvidas direta ou indiretamente no negócio do Futebol, espalhadas por mais de 210 associações no mundo inteiro. Todos os dias temos jogos, ligas nacionais, competições internacionais, entre países e entre clubes.
Cada clube é uma empresa, um negócio a ser gerido. O dinheiro é sem dúvida um fator determinante para o crescimento de um clube, mas não é o único fator de sucesso. A sua estrutura, a sua estratégia de curto, médio e longo prazo, determinam se estas empresas têm ou não potencial para crescer. Infelizmente, a gestão da maior parte dos clubes não é feita a pensar num crescimento sustentável, mas sim num retorno rápido associado a um risco muito elevado.
A maior parte dos clubes de futebol vivem para o jogo do fim de semana e para agradar aos sócios/adeptos. Contratam-se estrelas sem que exista capacidade financeira para pagar salários, com o intuito de agradar a massa adepta e tentar ter resultados a curto prazo, a maior parte das vezes abrindo buracos financeiros dificilmente recuperáveis. Inauguram-se novas modalidades com o único objetivo de recolher fundos junto das juntas/camaras.
As Sociedades Anónimas apareceram com o propósito de salvar/reinventar/impulsionar os Clubes, mas acabam muitas vezes por ter efeitos totalmente opostos. A separação entre equipa principal e formação é um tema que deve ser resolvido. Na verdade, o que acontece é que o Clube deixa de ter ativos onde pode ir buscar algum dinheiro, e a SAD muitas vezes deixa de beneficiar dos valores e da formação do próprio clube. Esta realidade, acaba por gerar entropias que se traduzem em consequências negativas sobre os adeptos do Clube, que deixam de sentir uma ligação afetiva entre Clube – Cidade. Ou seja, ninguém sai a ganhar.
Por um lado, as SAD’s não querem despender dinheiro na formação, uma vez que depois não obtêm lucros diretos e imediatos, por outro lado o Clube não quer ter um dono, e por isso o Estádio e a Formação devem manter-se dos “Sócios”. Em conclusão, acabamos por ter um sistema que não deixa a máquina funcionar.
O Futebol tem tudo para ser rentável, para pagar bons salários, para criar ambientes de festa e boa disposição. Mas infelizmente, a falta de processos e profissionalismo nas logísticas internas e na produtividade, é um grande entrave ao bom funcionamento dos mesmos.
Para garantir que ultrapassam esta pandemia da melhor maneira possível, os clubes precisam de várias ferramentas fundamenais: uma estrutura empresarial sólida, processos totalmente digitalizados e acima de tudo uma estratégia de investimento não só a curto, mas também a médio e longo prazo.
Estrutura, Tecnologia e Investimento
Digitalização + Eficiência de processos = Aumento da produtividade = Maior rentabilidade.
Para melhorar, os Clubes têm que aumentar os seus níveis de produtividade operacional.
As chefias
Tudo começa, em meu entender, pelo processo de seleção na contratação de um Diretor Desportivo ou de um Diretor Geral, que tem que ser muito bem equacionado. Não se deve continuar a contratar dirigentes apenas com base na sua carreira de futebolista profissional. É claro que um ex-futebolista de alto nível tem um conhecimento do jogo maior que os outros, percebe a realidade do que é um balneário e os problemas que podem existir entre treinador e jogador, entre estrutura e treinador. Mas tudo isso não significa que seja um bom gestor para o Clube. Quando se contrata para uma determinada posição, é fundamental ter em conta vários fatores: a capacidade de perceber e conhecer um clube no seu todo, conhecer todos os seus processos e todos os departamentos, saber liderar, perceber e ter uma visão a curto, médio e longo prazo.
Um Clube de futebol não deixa de ser uma empresa, com um enorme número de trabalhadores em muitos casos, e deve ser gerido como tal.
Oportunidade
Vejamos as áreas geralmente associadas à operacionalidade de um clube de futebol: Área Técnica, Scouting, Departamento Médico, Nutrição, Performance, Académico e Psicológico, Residências, Logística de transportes, Inscrições, Gestão de campos, salas, quartos, refeições, Gestão financeira, Gestão de contratos com Clubes, Gestão de agentes e jogadores… Estas áreas, que muitas vezes trabalham separadas geográfica e logisticamente têm dificuldades em comunicar umas com as outras. Utiliza-se o whatsapp, o mail, os sms. Mas a informação não deixa de estar espalhada pelos diferentes departamentos, que utilizam sistemas diferentes, o que traz uma imensa ineficiência dos processos e das decisões.
Um dia, ao entrar numa “sala de reuniões” de um clube em vésperas de inscrições da Liga, vejo 3 computadores abertos com duas pessoas a perguntarem se o scan do passaporte do atleta estava num ou noutro computador. “Ah está aqui!” – “Ok, então imprime lá. E vê se tem data de validade!” – “ F***-**!, não tá válido!” – “Liga já ao gajo a pedir o novo, e se não tiver tem que ir já hoje pedir um de urgência!!”. Posso dizer que não pairava calma naquele cenário e que a pressão para entregar a documentação completa era enorme. Porquê? Porque em boa verdade ninguém sabia bem onde estava a informação.
A solução passa, em primeiro lugar por ter uma definição clara e sistematizada dos fluxos de trabalho, mas também e acima de tudo, por um investimento de médio/longo prazo numa restruturação e automação desses processos através da tecnologia, para garantir um futuro estável e com crescimento sustentável.
Investimento
Existem hoje em dia, sistemas tecnológicos suficientes que permitem não só uma centralização da informação, como um acesso muito mais rápido à mesma. A evolução tecnológica é cada vez mais utilizada pelos treinadores para os seus próprios trabalhos (GPS, sistemas de organização de treinos, sistemas de análises de vídeo), mas é muito descurada ainda para todos os outros departamentos levando a que se perca muito tempo na gestão e distribuição da informação.
Vejamos o exemplo do GPS. Hoje, a maior parte dos clubes de primeira e segunda divisão utilizam coletes GPS para obter medidas de comportamento físico do atleta em campo, quer seja nos treinos, quer seja em jogo. O GPS mede dados como: acelerações, batimentos cardíacos por minuto, distancia percorrida etc. É claro que toda esta informação é importante e dá-nos insights sobre tendências e evoluções dos atletas. Mas, não se explora todo o potencial que estes dados têm para dar. Se conseguíssemos cruzar os dados relativos à performance física com os dados académicos por exemplo, teríamos uma verdadeira vantagem. Ter esta informação centralizada é a possibilidade infinita de cruzamentos de dados que irá servir para analisar tendências, perceber os cuidados a ter, conseguir definir processos de reabilitação e num futuro muito próximo e com a ajuda do Machine Learning, conseguir mesmo antecipar lesões e definir a melhor estratégia de planos de treino para os atletas. A partir do momento em que o sistema aglomera todos estes dados, começam a definir-se padrões. Imaginemos o exemplo de uma lesão de ligamentos cruzados do joelho direito para um defesa esquerdo e para um defesa direito. Na teoria, uma lesão de ligamentos cruzados tem um padrão de tratamento. Porém, dados como o pé preferido, o tamanho de cada prega cutânea, a alimentação, as análises clinicas, o tipo de arco da perna e até o tipo de chuteiras tem influencia na sua recuperação, que será diferente para o defesa esquerdo e para o defesa direito seguramente. O Machine Learning irá permitir um nível de acompanhamento ao atleta ultra pormenorizado com objetivo de melhorar os seus índices de performance, não só física, mas também psicológica.
E porque é que não há mais clubes a fazer este tipo de investimento? Simplesmente porque demora tempo a trazer resultados, e pior que isso, esses mesmos resultados não são sempre facilmente mensuráveis. A palavra Longo-termo não encaixa muito bem no mundo do Futebol…
Resistência à mudança e elevada rotatividade
O Futebol tem uma grande “costela” tradicional. Não é raro encontrarem-se profissionais do setor que têm a certeza que a sua é a melhor maneira, que se não for feito daquela forma então não vale a pena ainda que, o que se lhe é apresentado seja uma aglomeração das melhores práticas dos melhores exemplos de alguns dos maiores clubes do mundo. Se pensarmos bem, um treinador é, por norma, um ex-jogador, que teve que lutar pela titularidade a sua vida profissional inteira. Tem um “cargo a risco” em função dos resultados à semana e por isso, a sua postura costuma ser a de que ninguém o pode ajudar nas suas tarefas.
A resistência à mudança é grande. Muito grande. E eu percebo. Como convencer um treinador de 55 anos, que usa o seu papel para preparar treinos há 25 anos, que até ganha uns jogos, que é um bom motivador e que não acredita nas estatísticas, a começar a utilizar um sistema tecnológico que irá garantir que o clube melhora e que tudo se torna mais rápido e eficiente? Por mais que o sistema seja muito simples e muito user friendly, nunca deixa de parecer um bicho de 7 cabeças. Porque não é exatamente igual à forma como estava habituado a trabalhar nos últimos 20 anos.
Outra característica do Futebol que não ajuda em nada à sua evolução é a sua elevada rotatividade. E não, não é só de treinadores. Dirigentes, mesmo presidentes, donos podem ficar muito pouco tempo nos clubes.
Sabendo dessa condição, muitos trabalhadores no clube acabam por ficar muito mais “cautelosos” no que toca ao seu próprio trabalho.
Imaginemos o exemplo de uma equipa de arbitragem: numa análise que hoje é recorrente, poem-se várias questões. Será que temos um árbitro que entra logo a matar distribuindo cartões amarelos nos primeiros 15 min? Ou será que é um arbitro que vai crescendo com o jogo? Como é que costuma decidir em caso de dúvida com as linhas de fora de jogo (fora ambiente VAR)? Como é com expulsões e a nível de controlo do treinador? Toda esta informação é importante inclusive nas decisões sobre que equipa inicial escolher.
O que acontece atualmente, é que este tipo de análise fica na posse da equipa técnica que eventualmente abandona o clube. Será isto lógico? O treinador não é um trabalhador do clube? O seu trabalho e da sua equipa técnica não são propriedade intelectual do clube? Como pode um Clube evoluir se tiver que estar sempre a recomeçar do zero?
Na imagem abaixo podemos ver uma clara correlação entre títulos e rotatividade no que toca aos três “grandes” do futebol português.
A mentalidade que já começou a mudar, devagarinho… Haja esperança!
A importância da formação
Já temos hoje em dia em Portugal projetos muito interessantes, como o do Famalicão, no qual a SAD decidiu investir na formação (Clube) garantindo a definição de uma lógica entre os escalões de formação, para uma melhor preparação aquando da chegada à equipa principal. Infelizmente, ainda são poucos esses casos.
Sou Sportinguista desde que nasci. E serei Sportinguista de coração até ao dia em que morrer. Mas tenho uma admiração muito grande pelo Sport Lisboa e Benfica. Porquê? Porque tenho orgulho em ver um Clube de futebol que é gerido da forma que eu acredito que um clube deve ser gerido. O Benfica percebeu o conceito de custo de oportunidade. Investir agora e sofrer consequências durante uns anos, para poder colher frutos muito sólidos no futuro. (Atualmente o Benfica já colhe esses frutos …)
O que a estrutura do Benfica fez nos últimos 15 anos, foi ter uma estratégia e implementá-la. Quis perceber exatamente para onde o Futebol se dirigia e decidiu onde investir. Não foi a comprar jogadores caros e a pensar única e exclusivamente na equipa principal, mas sim a criar condições de formação sem igual, percebendo a importância da tecnologia nesse processo.
Tudo tem um custo de oportunidade. Luis Filipe Vieira torna-se presidente do Benfica em 2003. Benfica esse que já não era campeão há 11 anos. E durante 6 anos, apenas um campeonato nacional. Foram anos de restruturação, a criar novas visões e estratégias para o clube, a investir. Com certeza, os benfiquistas estavam muito impacientes na altura. Mas quando as coisas são bem-feitas, os resultados aparecem. Seis anos, cinco títulos de campeão nacional. Os números falam por si… Mas o projeto não fica só pela hegemonia atual a nível nacional. E esse projeto tem as suas fases. Um dos custos foram as competições europeias.
Se o Benfica podia fazer melhor nas competições europeias? Claro que sim. Mas o custo de oportunidade seria abdicar de um investimento de longo prazo, que já deu alguns frutos, mesmo que ainda tenha um longo caminho a percorrer. E, enquanto o fazem, vão ganhando anos e anos de vantagem competitiva face aos seus rivais mais diretos.
As mentalidades vão mudando. Clubes como o Sporting Clube de Braga, o Vitória Sport Clube, o Estoril Praia, também já vão percebendo a importância deste investimento. O Sporting Clube de Portugal, depois de ter sido pioneiro nesta mentalidade, voltou agora a querer investir nela.
A importância dos adeptos
Outro ponto determinante é a influencia e o apoio dos adeptos. Para que as estruturas consigam tomar este tipo de decisões é necessário também o apoio da massa adepta, e a compreensão da mesma. A comunicação entre Clube e adeptos deve ser realista e objetiva. Não serve de nada dizer-se candidato ao titulo, quando objetiva e realisticamente, o máximo a que se almeja são as competições europeias. A gestão da expectativa por parte do clube é fundamental para uma melhor compreensão e aceitação dos adeptos a todos os níveis.
O Futuro, em Portugal e lá fora.
“Então e quando é que achas que isto vai mesmo mudar?”
Portugal não é diferente dos outros países, acima de tudo na Europa. Não estamos mal, mas um facto é que os nossos estádios estão vazios e os nossos salários são muito baixos para atrair bons jogadores, que preferem jogar na segunda divisão belga à nossa primeira. Sem contar com Benfica, Sporting e Porto, a média de salários anuais na Liga NOS situa-se nos 66.000€ vs 90.000€ anuais na segunda divisão belga.
A Federação e a Liga muito têm feito para o bem do futebol Português. Desde o certificado de entidades formadoras, ao processo de inscrições online da Liga, aos prémios pelos melhores relvados que fizeram com que ver um jogo na televisão no estádio do Portimonense passasse a ser um prazer.
Uma nota também para o excelente contributo do Canal 11 que nos veio “refrescar a cabeça”, falando de Futebol no seu estado mais puro.
Tudo isto irá influenciar positivamente o crescimento do futebol Português.
Num quadro de evolução tecnológica a maior parte dos clubes de primeira divisão já vai possuindo ferramentas para uma melhoria no aspeto tático e técnico do jogo, mas claramente insuficiente.
Mas, para garantir que o sector do futebol cresce de maneira rentável, é necessário que essa evolução na área técnica e desportiva seja acompanhada de uma evolução na área operacional e administrativa. Começando por definir estratégias, definir a estrutura e contratando minuciosamente para cada cargo, deixando de viver à base de estagiários não remunerados, investindo em equipamento tecnológico para todos e não só para uns, melhorando as condições dos relvados e de higiene dentro dos clubes, criando mecanismos de ligação aos adeptos conseguindo sempre fazer uma gestão das expectativas realista e objetiva, etc etc etc .
Levantados que foram aqui alguns problemas desta modalidade, estou em querer que a atual situação que se vive à escala mundial por causa da Pandemia do Covid 19, deve ser aproveitada como uma oportunidade de aceleração da mudança, tão necessária para a modernização do setor do futebol.
Não podemos esperar 10 anos para mudar. Investir em tecnologia, estabelecer estratégias e objetivos de apoio à gestão de médio e longo prazo, é um imperativo, em Portugal, como no resto do mundo. Só assim estaremos conectados e faremos parte da equação a nível mundial. Não há alternativa.
Quem continuar a gerir um clube com base no fim-de-semana seguinte irá ficar para trás.